Todas as manhãs me cruzava com ela.
Costas curvadas , passo descoordenado e lento . Feições sulcadas de rugas, uma tez branca e suave. Os seus olhos pareciam-me claros, mas estavam escondidos pelas pálpebras já caídas e no tímido olhar debruçado no chão.
Totalmente vestida de negro, tal como recordava a maioria das pessoas idosas da aldeia aonde a minha mãe nasceu.
Todos os dias, ás 7 da manhã.
Voltando a casa ao fim do dia , numa hora correcta como os relógios das antigas salas senhoriais, a seu passo . Sobe a rua em sentido contrário , com uma pequena diferença : Nas mãos trazia um singelo ramo de flores silvestres.
Eu perguntava-me se era mera coincidência ou se realmente aquela senhora descia até aos campos e só voltava ao fim do dia, com o seu ramo.
Começou a fazer parte do meu dia a dia. Passando algumas semanas, começou a levantar a cabeça e a parar quando eu passava .
Semanas mais tarde, já me cumprimentava com um leve acenar de cabeça. E todos os meus finais de tarde, eram reconfortantes quando chegava da cidade , entrava no meu paraíso campestre e tinha esta imagem serena e misteriosa me cumprimentando, como me dizendo :
” Bem vinda ao mundo real ! Aonde o som das árvores é musica e o do vento, a letra dessa bela melodia “
Num dia perdido de Abril, eu voltei a casa embrulhada em lágrimas.
Entrei em casa com um imenso peso nos ombros. Devagar saí do carro, para tentar sentir o vento e a melodia, para acalmar o vazio.
Lentamente me viro para o portão, que ainda não se encontrava totalmente fechado, pressentindo uma presença. E lá estava a minha companheira de boas vindas e boas idas.
Devagar caminhou até mim, nas mãos as flores silvestres.
“Menina desculpe…mas hoje elas são para si ” e entregou-me o ramo .
Meio deformado, sem alinhamento, em estado bravo e realmente silvestre…
” Mas …obrigado “
” Não é obrigado, é o meu trabalho, eu recolho flores que vou colocar diariamente no cemitério e nas campas de quem me pede , para reconfortar os seus entes queridos, estas são para a sua mãe. “
“Mas …foi o meu pai que faleceu hoje.”
“Claro que foi menina ! e foi o seu pai que me pediu para entregar á sua mãe, mas eu não sei aonde ela está em eterno descanso.”
Virou-se e foi caminhando devagar e pausadamente, até ao portão.
Lentamente me retornou à memória as suas palavras : “…o meu trabalho… “
Corri até ela .” Desculpe, mas se é o seu trabalho, quanto lhe devo ?”
“É o meu trabalho, porque prometi ao meu marido que nunca pararia de colher as flores, que ele sempre colheu para colocar nos companheiros do cemitério, ele era o coveiro desta aldeia .”
“Mas….”
” Menina, tem que aprender algo! nem todo o trabalho tem que ser pago e enquanto trabalhar, estou viva. Não existe pagamento para esta bênção. Faço-o pelo meu homem.”
E saiu.
.
Eu olhei o ramo …senti o vento …ouvi o som…e as minhas lágrimas lentamente secaram com a bela melodia que corria entre os ramos e era soletrada no vazio que existia em mim .
Na manhã seguinte, ajoelhei-me junto a ela :
.
“Toma mãezinha… foi o papá que enviou para ti “.
Paula Gouveia 2011